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Seguro e coronavírus: o que ambos têm a ver comigo e com você?

No mundo todo, a atividade de seguros tem uma mesma característica básica: a seguradora recolhe dinheiro de um determinado número de pessoas (prêmio) para devolver para parte desse grupo caso ocorra o evento contra o qual se fez o seguro (indenização). Não é à toa que a atividade é bastante regulada: a seguradora é, no fim do dia, uma administradora de poupança popular. Se ela quebrar, a sociedade será prejudicada.

Há mais duas características muito importantes dessa atividade:

1)   Tira das costas do governo a obrigação de socorrer a sociedade, gastando um dinheiro (nosso, diga-se de passagem) não previsto em orçamento, para, por exemplo, cobrir os prejuízos decorrentes de uma catástrofe natural.

2)   Como os eventos cobertos são futuros e incertos, a seguradora é obrigada a provisionar um dinheiro para fazer frente a eles (as chamadas reservas técnicas), já que muitos desses eventos acontecerão com certa frequência e intensidade, geralmente observando uma série histórica (área de estudo da ciência conhecida como atuária). Essas reservas são geralmente aplicadas em títulos do governo, ou seja, ajudam a financiar o desenvolvimento do país. Decorre daí que, quanto mais seguro uma sociedade fizer, mais investimentos ela terá por parte do governo.

Então, as reservas técnicas administradas pelas seguradoras são um recurso que pertence à sociedade, aos segurados, a quem contratou os seguros. Claro que a seguradora cobra um valor adicional para cobrir suas despesas administrativas e comerciais, impostos e lucro. Mas a maior parte dessa soma será direcionada às reservas técnicas.

Um exemplo de como isso funciona: uma determinada tábua de mortalidade diz que, num universo de mil pessoas com 75 anos, possivelmente 4 morrerão (4/1.000) face a uma determinada circunstância, com base em estatísticas dos últimos 100 anos para aquele grupo. A seguradora aplica a essa taxa (4/1.000) um carregamento de segurança, digamos, de 40%, para poder “capturar” eventuais desvios futuros, já que o seguro é feito hoje normalmente com vigência de um ano. Não faz sentido aumentar muito essa margem de segurança porque o custo do seguro pode ficar muito alto e inviabilizar a sua comercialização. Quanto mais gente contratar o seguro, mais acessível será seu preço.

Não por acaso, a grande maioria dos seguros exclui megaeventos como guerra, explosões nucleares, algumas catástrofes naturais, epidemias e pandemias. Esses eventos quebram a previsão de frequência sobre a qual foi calculado o preço do seguro.

Mas há um outro lado dessa estória: epidemias têm sido cada vez mais frequentes, assim como as catástrofes naturais. O mercado, então, tende a ofertar dois produtos: um básico e barato, e outro mais complexo, com coberturas para esses eventos “fora da curva”; porém, bem mais caros, e poucos terão acesso a esses produtos mais sofisticados.

Podemos, então, resumir essa resenha com uma foto do atual contexto de pandemia do coronavírus no Brasil x seguro:

1)   A maioria das pessoas não tem seguro de saúde ou de vida;

2)   Para quem tem – poucos em relação ao total da população brasileira –, o seguro não cobre esse evento.

Como estamos vivendo um momento de grande apelo à solidariedade, os corretores de seguros de todo o país, representados pelos seus sindicatos estaduais (Sincor) e pela federação (Fenacor), pediram às seguradoras para que indenizem sinistros decorrentes desse evento, a despeito de suas apólices excluírem. Na prática, do ponto de vista jurídico, é passar por cima do contrato. Mas, de novo, há um contexto social a ser considerado.

Tive notícia de que três seguradoras já se pronunciaram favoravelmente ao pedido. Essa é uma ótima notícia. Tomara que todas o façam. Mas não sejamos ingênuos: dinheiro é um recurso esgotável, principalmente quanto utilizado para fins que não foram previstos. Lembremos que a seguradora está administrando um dinheiro da sociedade, que foi “carimbado” para somente sair do caixa se ocorrerem determinados eventos combinados no contrato de seguro (apólice). Nesse sentido, nenhuma seguradora poderia usar as reservas técnicas para pagar esses sinistros por um motivo simples: esse dinheiro não é dela – a não ser que estejamos falando de dinheiro advindo do seu lucro. Ela só poderia fazer isso depois de pedir e obter autorização dos segurados porque, no fim do dia, se as reservas ficarem abaixo do nível de solvência, o valor para recompô-lo será rateado entre todos nós.

É uma sinuca de bico dos pontos de vista técnico e jurídico, e entendo que o compromisso social sempre foi e continuará sendo a marca registrada do nosso mercado. E é exatamente por isso que devemos compartilhar com a sociedade os prós e os contras de possíveis mudanças de regras.